Jose de Anchieta: jesuíta, teatrólogo, santo sem milagres!

A companhia de Jesus e a educação eurocêntrica no Brasil colônia.

Texto; Dayse Angela do Nascimento Azevedo


"...escravos encarregados de recolher e jogar
diariamente os dejetos  domésticos na praia."
Historia da Vida privada do Brasil 2.
Alencastro Felipe - Sao Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
Para melhor analise e reflexão sobre ‘sustentabilidade’ tema pertinente à pesquisa em questão, proponho portanto, recapitular a historia do séc XVI Brasil colônia e identificar, nesse processo (sócio-histórico-politico-cultural), alguns aspectos que possivelmente foram responsáveis pela atual  crise, ou melhor, pelo atraso presente na sociedade brasileira de hoje: Brasil contemporâneo, século XXI.


Na segunda metade do século XVI o projeto de colonização promovido pela Corte Portuguesa  tinha como foco, o projeto econômico da terra de ocupação e exploração  do  solo brasileiro, as riquezas naturais, tais como: madeiras, metais, pedras preciosas e, sucessivamente, um projeto de plantio. Mas, possuía também, paralelamente a esses projetos, o projeto de teatro dos jesuítas, a “Companhia de Jesus”. Projeto esse sustentado por uma Pedagogia Jesuítica de teatro que se destacou bastante por ter difundido o poder monárquico: sócio – político - cultural, defendido pela Coroa Portuguesa.


Os fatos

O teatro dos jesuítas em sua forma agressiva de aculturação, tentou retirar o nativo de sua própria historia, levando-o a suspensão do sujeito.  “Consideravam – nos bárbaros e, como missionários, propunham-se a acabar com a sua cultura...” CORREIA, Rosita (1994, p. 23).

Nesse percurso, por meio de um teatro civilizador propagador de valores, destaca-se a figura de Jose de Anchieta: jesuíta, teatrólogo da Companhia de Jesus que tinha como missão, catequizar os índios. Em solo brasileiro, com apenas dezenove anos, Anchieta colocou seus conhecimentos, poético – dramatúrgico e linguísticos a serviço da religião por meio do teatro.

Assim, ao perceber que os índios gostavam de dançar, de valorizar rituais e festas, Anchieta, além de se apropriar da língua Tupi, introduziu tais elementos(danças e rituais)em suas peças, fazendo valer com isso, os dogmas religiosos cristãos. As peças eram inspiradas nos autos de tradição medieval, explorados por Gil Vicente.

O teatro pedagógico jesuítico se tornou um aliado bastante importante na luta pela conversão dos indígenas. Foram utilizados espaços diversificados para as apresentações parateatrais, da companhia, tais como: espetáculos cívicos e comemorativos exibidos em praças publicas e, em colégios administrados pelos Jesuítas nas cidades de Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente, São Paulo e, no ‘Sertão e cabo do mundo’ no dizer do padre Fernão  Cardim[1], porque  era a única vila afastada da orla Atlântica.

A pedagogia jesuítica foi movida por aniquilamento, substituição da cultura nativa pela cultura européia. Em território de fato ‘multicultural’,  por nele circular diferentes culturas, o poder- saber - fazer era de  domínio exclusivo do colonizador. As culturas colonizadas, que no território transitavam, viviam sob um regime totalitário, repressor, monocultural, eurocentrico, opressor.

Com isso, a companhia de Jesus impediu o amor humano, na medida em que  negou valores, costumes, formas de vida características da população nativa do Brasil. Definiu e influenciou a autoimagem e autoestima, no que se refere à negação do sujeito, índio.

Tal processo de desenvolvimento ‘insustentável’ muito contribuiu ao fortalecimento de uma política: sócio educativa - monocultural e racista que ainda hoje é presente em nosso país, em nossas vidas, em nossos livros didáticos, em programas de TV, em filmes, em diferentes mídias de comunicação, enfim! Processo esse que não se limita aos nativos, mas também, aos negros, aos afrodescendentes, mestiços brasileiros, provenientes de uma camada da sociedade, desprivilegiada.


Estratégias e características das ações pedagógicas, eurocentrica  e multicultural dos jesuítas: 

São quatro importantes estratégias pedagógicas, voltadas ao fortalecimento e a quebra da identidade do índio, bem lembradas por CORREIA Rosita (1994). Tais estrategias são também uteis a reflexão, ao processo do negro – africano e afrodescendente em solo brasileiro (o que virá aprofundado no próximo artigo). Vamos as estratégicas pedagógicas de   poder, responsáveis ao aculturamento, das populações acima referendadas:

a) processo de desenraização da terra - retirada do índio do seu habitat natural, “dando o primeiro passo para a formação de um novo ser humano, com outro tipo de vida, ao qual iriam sendo incorporados os valores europeus e cristãos, imprimindo-lhes outra visão do mundo.” CORREIA Rosita ( p. 23 

b) Demolição do símbolo redondo - introdução da linha reta, retilínea. Inversão do coletivo ao individual: longe de seu grupo, natureza, meio ambiente. Sobre o espaço circular: “nova dimensão posicional, a noção de verticalidade e a individualidade ao nível do solo, onde, o ser humano que carrega o estigma da transitoriedade, se sente limitado pelo céu ( que lhe pesa sobre a cabeça) e um inferno ( que o atemoriza sob os pés)” CORREIA Rosita apud Gambino  (p. 23).

c) Imposição do tempo cronológico - “tinha como pontos de referencia os eventos e as festividades cristas introduzidas pelos ‘descobridores’ europeus (...). Isto quebrava a tradição temporal da roda, que servia aos nativos de orientação cíclica natural: tantos sois, quantas luas, por exemplo”. Correia Rosita apud Gambini (p.23)

d) a apropriação da língua Tupi e a pratica de pedagogia do teatro - principal arma utilizada pelos jesuítas para dominar e introduzir sua cultura  e seus dogmas religiosos. "Após sofrer tal processo, o índio deixará de ser o representante autentico de uma cultura natural e ressuscitará ‘ embranquecido’, portador de uma nova identidade, de um novo nome, ganho depois de batizado e cristão, aculturado à imagem do colonizador.” (p. 31)


Herança Teológica

Segundo o filosofo italiano Giorgio AGAMBEN, A  teológica crista  foi fundamentada na noção de OIKONOMIA. " Nos primeiros séculos da historia da Igreja - digamos, entre o segundo e o sexto século, o termo grego OIKONOMIA desempenhou na teologia uma função decisiva. OIKONOMIA significa em grego a administração do OIKOS, da casa, e mais, geralmente, gestão, management.".AGAMBEM ( 2010, p. 35).

Nesse período do século houve uma separação, uma cisão  em Deus, entre SER e AÇÃO. Ontologia e a praxe. No primeiro caso refere-se a (normas religiosas direcionadas ao ser, humanizado)  e, no segundo, "a ação (a economia, mas também a política introduzida pela OIKONOMIA). Segundo AGAMBEN essa separação não condiz com as necessidades do SER vivente e acrescenta: “... esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da OIKONOMIA deixa como herança à cultura ocidental." (p. 35). “Esta cisão separa o vivente de si mesmo e da relação imediata com o seu ambiente [...] Quebrando ou interrompendo esta relação, produzem para o vivente o tédio” (p. 43).

A formação de uma Pedagogia jesuítica através do Teatro para ajudar a administrar o momento histórico da colonização no Brasil, teve uma função estratégica de força de poder e assim, podemos identificar um DISPOSITIVO de poder. Um DISPOSITIVO é para AGAMBEN um termo técnico decisivo na estrategia do pensamento de FOUCAULT.  Ao abandonar o contexto foucaultiano, AGAMBEN situa os dispositivos em um novo contexto e propõe  uma divisão do existente em dois grandes grupos ou classes:   "de um lado, os seres viventes (ou, as substancias),e, de outro, os dispositivos em que estes são incessantemente capturados. Isto é, de um lado, para retomar a terminologia dos teólogos, a ontologia das criaturas, e, do outro, a OIKONOMIA dos dispositivos que procuram governá-las e guiá-las para o bem." (AGAMBEN, p. 40). Houve uma "espécie de formação que em um certo momento histórico teve como função essencial responder a uma urgência". Foi exatamente, o que ocorreu na historia do Brasil e, em especial, na historia dos Jesuítas, Companhia de Jesus e a Coroa Portuguesa.

" Não seria provavelmente errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos. Certamente, desde que apareceu o Homo Sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por alguns dispositivos." (AGAMBEM, p. 42)



Definição de SUJEITO 

“ Recapitulando, temos assim duas grandes classes, as dos seres viventes ( ou as substancias) e os dispositivos. E, entre os dois, como terceiro, o sujeito. Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.” AGAMBEN, (p. 41).

Como AGAMBEN entende os DISPOSITIVOS : 

" qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Nao somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fabricas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro,a navegação, os computadores, os telefones celulares e- por que não a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos..." (p.40/41).



REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. Ed: Perspectiva, 1993. ( Col. Debates n. 261)...  [1] Padre Fernão Cardim relato de viagem  na província do Brasil que endereçou à Lisboa 1581
-CORREIA Silveirinha Paneiro, Rosita. O Teatro Através da Historia - O Teatro Colonial Brasileiro.Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Entourage Produções Artísticas, c 1994. V.2
- AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, Santa Catarina: Argos, 2009.
- FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1982.
- Alencastro, Felipe. Historia da Vida privada do Brasil 2. Companhia das Letras, 1997